16 de Novembro de 1922 - 18 de Junho de 2010
“A finitude é o destino de tudo”
A minha primeira lembrança é a cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Literatura. Tinha dez anos.
“A Jangada de Pedra” navegou até às minhas mãos por conselho do meu professor de Língua Portuguesa do 5º e 6ºano. Estranhei, entranhou-se e gostei. Nunca tinha lido nada assim. Mas não percebi completamente e, de imediato, a sua magnitude.
Algum tempo se passou e os seus livros espreitavam por entre as prateleiras lá de casa. Um dia tirei “Todos os Nomes” e, mais uma vez, reagi com encanto e surpresa às suas palavras. A sua tão controversa e criticada “falta de pontuação” não me incomodou. Achei porventura peculiar, mas com toda a certeza desafiante.
A paragem seguinte foi Mafra, por entre as excentricidades e inconsciências de um rei, o elogio a um povo herói, o amor entre Sete-Sóis e Sete-Luas e um padre que queria voar, comandado pelo sonho! O “Memorial do Convento” foi uma viagem de deslumbramento, de aprendizagem, o consolidar de uma paixão que, latente, queria despertar! A riqueza da sua escrita, o simbolismo de cada expressão e frase, a acutilante (e infelizmente actual) crítica social, religiosa, de costumes, a sua reinvenção tão própria, sábia e reflectiva da História enfeitiçaram-me, pura e irremediavelmente! O amor livre, espontâneo e eterno de Blimunda e Baltasar, a irreverência e inconformismo do padre Bartolomeu Gusmão na construção utópica da Passarola são, para mim, um delicioso e refrescante porto a que sempre voltarei!
A curiosidade e expectativa apoderaram-se de mim quando comecei a ler “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”. Sim, surpreendeu-me; sim chocou-me, mas novamente pela prodigiosa, satírica, envolvente e séria desconstrução de um mito, de um dogma! Jesus Cristo surge humanizado: ama, sofre e também peca. O episódio de Deus, o Diabo e Jesus em conversa no mar, sob o nevoeiro, é memorável, através de uma autêntica análise sagaz e meditativa das intermitências e contradições da Religião e da Vida!
O “Ensaio sobre a Cegueira” foi choque, foi desconforto, contudo uma revelação e um prazer. Sempre presente, a crítica profunda à sociedade; sempre presente, a obrigação de reflectir, tal como em toda a sua obra! O filme “Blindness” foi uma belíssima e certeira adaptação, uma merecida e comovente homenagem!
Pelo meio, desabrochou “A Maior Flor do Mundo”, num delicado, comovente e ensinador livro infantil, mas não apenas para crianças!
Saramago deu mais do que recebeu, não que isso lhe fosse o mais importante. A mim deu-me muito, mais do que conseguirei descrever. De Saramago escritor, ficam os livros com que cresci, reflecti e vi para além das palavras, através da riqueza e simbolismo que marcavam a sua obra, de uma maneira tão simples como grandiosa e verdadeiramente admirável! De Saramago homem, fica-me a memória de um combatente da apatia, da injustiça, do inconformismo, da tirania, um comunista até ao fim, mas acima de tudo, um homem fiel às suas convicções e ideais!
Hoje, ofereço a minha homenagem. Triste, mas convicta de que o seu legado e a sua memória perdurarão, despeço-me do senhor da Azinhaga e de Lanzarote que um dia me ensinou, enriqueceu e maravilhou com o seu dom da palavra! E faço minhas as palavras de Fernando Meirelles: “A lucidez naquele grau é um privilégio de poucos, não consigo fugir do clichê, mas definitivamente o mundo ficou ainda mais burro e mais cego hoje.”
Catarina:
ResponderEliminarQuem me conhece sabe que reconheco e acentuo o valor enorme que ele tinha como figura da cultura portuguesa e por conseguinte, o mesmo se aplica ao seu trabalho cujo valor literário também é desmedido.
Como em tudo na vida, uns gostam, outros não gostam. Não é por lhe reconhecer valor que gosto dele. Não lhe queria mal, mas a morte dele não me aqueceu nem arrefeceu porque tal como disseste e bem, o legado perdurará.
Sobre o desrespeitosa...bem são opiniões. Quem anda a chuva molha-se. Se ele afirmou o que afirmou tinha de arcar com as repercurssoes. "Deitou-se na cama que fez" literalmente.
Rita:
ResponderEliminarDa maneira como escreveste a mensagem, não parecia que esse reconhecimento a que te referes agora estivesse patente, daí o meu comentário. Não estava em causa o gosto pela obra, pois, obviamente, os gostos não são e não têm que ser iguais.
A minha opinião em relação à pessoa de Saramago é claramente diferente da tua e foi com pesar que ouvi a notícia da sua morte. Relativamente às controvérsias da sua obra, em particular a religião que é o que está aqui em causa, só tenho a dizer que as suas afirmações, por mais incómodas que possam ser para a Igreja Católica, fazem as pessoas pensar e discutir e reflectir sobre a Religião, prevenindo-as da apatia e do conformismo, algo que Saramago sempre se esforçou por combater, não só no aspecto religioso, como em todos os aspectos da sociedade actual!
Tendo em conta que não gostava dele até acho que fui tanto no post como ao longo dos comentários bastante comedida e agradavel (e sincera acima de tudo).
ResponderEliminarE por combater não se deve por logo uma medalha ao peito. Há e houve muitos escritores que combateram mais que ele. Apenas não ganharam um Nobel,ou não obtiveram o reconhecimento do Saramago porque não faziam questão de estar no meio da polémica. É como já disse, deitou-se na cama que fez (não me refiro à morte mas sim à contorvésia que gera à sua volta).
Rita,
ResponderEliminarobviamente não estamos em sintonia. Sincera, acredito; de resto, não definiria os teus comentários como comedidos e agradáveis e, não digo isto por expressarem uma opinião diferente da minha, mas muito simplesmente pelo modo como a expressaste.
E quem se deve reconhecer senão também aqueles que combatem?
É claro que existem muito bons escritores de língua portuguesa para além de Saramago (aponto como exemplo António Lobo Antunes, José Luís Peixoto, Mia Couto, Inês Pedrosa, entre tantos outros...). Agora o reconhecimento de Saramago advém da sua qualidade, da sua riqueza e não das polémicas que surgiram à sua volta, motivadas pelo desacordo e pelo ódio.
Encerro aqui esta discussão.
Um BRILHANTE texto que escreste aqui sobre a tua experiência pelo mundo de Saramago.
ResponderEliminarEu começei pelas Intermitências da Morte...foi importante para "eliminar" preconceitos que tinha relativamente à sua escrita (incutidos muitas vezes por pessoas que nem sequer leram Saramago) e suscitou-me a curiosidade para outros livros. Seguiu-se A Jangada de Pedra (uma imensa e maravilhosa metáfora), Memorial do Convento (tenho que lhe dar outra oportunidade) e o fabuloso Ensaio sobre a Cegueira. Concorde-se ou não com as suas ideologias políticas e com as suas atitudes, aquilo que nunca nos podemos esquecer é de toda a obra que criou, levando, com ela, o nome de Portugal a todos os cantos do mundo. Um orgulho português.
Depende do termo de comparação. Claro que se compararmos os meus comentarios com os de alguem como tu que so diz maravilhas dele obviamente que não são comentários agradaveis, mas se fores ler alguns blogues do sapo verás que sou muito comedida em comparaçao a algumas das coisas que dizem sobre ele.
ResponderEliminarAh e Mia Couto não é bem literatura portuguesa. Chama-lhe literatura lusofona porque ele é moçambicano e não portugues (os pais é que são portugueses).
Rita,
ResponderEliminarda minha parte, está terminada esta discussão. A minha reacção inicial à tua mensagem foi devida à tua frase: "O herege morreu..." que achei desrespeitosa de facto,e por isso, não a posso classificar nem como agradável nem como comedida. De resto, a tua opinião sobre a obra e a pessoa de Saramago é a tua opinião. Obviamente que não concordo com ela e tenho pena que seja essa a tua opinião, pois demonstra um desconhecimento em relação à sua obra, que é de uma riqueza e simbolismo inimagináveis.
Já agora, eu não escrevi literatura portuguesa, mas sim escritores de língua portuguesa, o que é diferente, exactamente para englobar escritores dos PALOPS, por exemplo.
André,
ResponderEliminarobrigado! Foi isso que eu tentei exprimir no meu texto: o que significa para mim Saramago!
Estou absolutamente de acordo com o que disseste! E de facto incomoda ouvir ou ler comentários negativos e preconceitos de quem nunca leu Saramago...
As Intermitências da Morte ainda não li...dá mesmo outra oportunidade ao Memorial do Convento ;) é talvez o meu preferido dos que li dele (acho que essa admiração estava bem patente no meu texto)
Um grande perda para Portugal...um imenso orgulho português!
O seu génio é eterno.
ResponderEliminarAbraço
Cinema as my World
Nekas,
ResponderEliminarclaramente de acordo!
Abraço :)
Grande professor Damião ! ^^
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