Crítica com spoilers
Por Antipasto designa-se tradicionalmente o primeiro prato de uma refeição italiana formal. E não, não é apenas um conjuntinho de aperitivos para enganar a fome – esta assembleia de carnes fumadas, cogumelos, azeitonas, queijos e muito mais marca oficialmente, com pompa e circunstância, o início da refeição.
Ai ai, mas por que raio vim parar a um blogue de culinária?! Como é que eu fiz isto?
Calma leitores, estais no sítio certo…mas esta introdução gastronómica surge como efectivamente necessária e justificada! É que Antipasto, o tão esperado regresso de “Hannibal”, pode inicialmente parecer deslocado, pode de facto parecer meramente um prelúdio ou uma distracção da questão principal que nos tem assombrado: o que aconteceu depois de Hannibal sair daquela casa manchada a sangue e chuva? Quem esperava sirenes de ambulância e os nomes dos sobreviventes pode ter-se sentido defraudado (eu senti-me algo desorientada, pelo menos) mas por muito pouco tempo, certamente. É que Antipasto fez jus ao seu nome e foi indubitavelmente um delicioso, hipnotizante, sumptuoso, tenso e sempre enigmático começo de temporada! Uma misteriosa e chique soirée em Paris que, marcada a sangue, nos conduz a Florença, berço do Renascimento. E haverá melhor lugar que este para albergar Hannibal, homem dos setes ofícios e artes, culto, inteligente, perfeccionista, maquiavélico e carismático? (sim, eu não me esqueci que ele é um psicopata/canibal/assassino em série mas não se lhe podem negar estas qualidades!). Pois é aí que o encontramos, luxuosamente instalado e belissimamente acompanhado pela não menos enigmática e atraente Drª Bedelia du Maurier, numa ligação tão interessante quanto perturbadora! Mas já lá iremos…
Antipasto centra-se exclusivamente nas interacções de Hannibal após Mizumono: a relação com Bedelia vai sendo justaposta com a relação com alguém do seu passado – que não, não é Will Graham, é nada mais nada menos que o Dr. Gideon, sob a forma de memória ou sonho. O famigerado Dr. Gideon, também ele um louco e um assassino, que, como já adivinhávamos da temporada anterior, sofreu um destino, se não inqualificável, no mínimo perturbadoramente aterrador, às mãos de Lecter. E assim surge, num passado a preto e branco, como jugo moral de Hannibal, como a vozinha na consciência que ele possuiria se não fosse, lá está, um autêntico psicopata! Cada minuto destas conversas é ouro, não só pelo seu teor (como se de um desvendar da psique se tratasse), como pela extraordinária composição de Eddie Izzard, que naquele tom cadenciado e sólido é ainda imponente e desafiador! O quão de força é ouvi-lo retorquir para Hannibal que espera o dia em que este estará na mesma posição que a sua? E tão retorcido se afigura agora o dito “somos o que comemos”? Que arrepiante cadeia alimentar…
Que o diga Bedelia, a resguardar-se num regime de ostras, trufas brancas, nozes…ou como ela tão eloquentemente afirma: “coisas livres de um sistema nervoso central”…Mal ela sabia que esse era precisamente o conteúdo das refeições dadas aos porcos no Império Romano antes de serem abatidos…Esta cena foi verdadeiramente hilariante, com o hesitante engolir em seco de Bedelia e o regozijo inquisitivo de Hannibal! E regressa novamente a questão, uma das que nos intriga desde aquele alucinante e sangrento final de temporada: porque está Bedelia ao lado de Hannibal, porque voltou e agora o acompanha nesta fuga? É medo, do género, se não podes fugir junta-te a eles? É loucura partilhada? É curiosidade? Até Hannibal levanta a questão, naquele ameaçador e provocante “Are you observing or are you participating?”. Bedelia é, desde o início, uma das personagens mais intrigantes da série; não conhecemos o seu passado, não conhecemos as suas motivações. O mostrar do seu ataque (com o bónus de um cameo de Zachary Quinto) ofereceu-nos mais perguntas que respostas, quer quanto à sua personalidade quer quanto à extensão e profundidade do seu relacionamento com Hannibal. E quão sublime é Gillian Anderson na composição desta personagem? Infinitamente sublime! E intemporalmente bela e sofisticada, intermitentemente frágil e forte, ultimamente carismática! Bravo!
E quanto a Hannibal Lecter? Ora, ora, Hannibal está nas suas setes quintas, a alimentar o espírito e o corpo, numa busca idílica pela satisfação e pela perfeição! “You forgot ethics. You only care about esthetics now“, retorque Bedelia a Hannibal, numa daquelas suas provocações tensas. E talvez assim seja; luxuosamente instalado em Florença, Hannibal nunca cessa de jogar o jogo, de maquinar, de planear o seu bem-estar máximo, aproveitando e deturpando a beleza que existe no mundo, daí a “joie de vivre” a que me refiro no título. E se alguém se atravessa no seu caminho…bem, já o conhecemos suficientemente bem para adivinhar o que ele lhes reserva não é? E volto ao confronto entre Bedelia e Hannibal, no qual ela, entre o temor e a curiosidade, é forçada à constatação que o observar não existe, que o sangue da vítima que lhe mancha o rosto é prova da sua participação! E enfrentar o ar de completo prazer e superioridade de Hannibal face a tudo isto é não só incómodo, como nos faz balançar entre o desprezo e a admiração que possamos sentir por esta personagem! Um excelente trabalho de Madds Mikkelsen, que não destoa daquele a que já nos tinha habituado!
Despeço-me com uma nota final para a opulenta e hipnotizante estética da série, que se omnipresente desde o seu início, é sempre digna de nota!
Antipasto é um regresso que podemos classificar como mais contemplativo e mais pausado, mas nem por um minuto menos tenso e intrigante. Permitiu explorar a relação entre Bedelia e Hannibal e até a sua própria psique, ainda que nos dando mais questões que respostas. Solidamente desenvolvido e interpretado, Antipasto marcou o ritmo para uma temporada que se afigura como deliciosa e perturbadoramente avassaladora!