09 setembro 2015

Hannibal - Folie À Deux



A crítica que se segue contém spoilers!




"That’s all I ever wanted for you, Will. For both of us.

It’s beautiful.”


                      
The Wrath of the Lamb”. A ira do inocente. Ou o sacrifício do inocente? E poderemos falar verdadeiramente de inocência? Do desenho passou-se à concretização – Maybe this is my becoming. A comunhão consagrada ao negrume do luar. A sincronia dos corpos e das mentes, num pas-de-deux extático e fatal. O abismo nunca foi tão perturbadoramente belo e desolador.




É avassaladora a forma como “Hannibal” se consegue superar constantemente, em arriscada, provocadora, bela e hipnotizante função exponencial! Se isso já era indiscutível nas temporadas anteriores, na terceira temporada alcançou-se um novo patamar, principalmente, devo acrescentar, após a introdução do “Great Red Dragon”! A primeira metade da temporada foi pródiga em nos mostrar uma nova dinâmica na relação entre Will e Hannibal, caçador e presa indefinidos, separados fisicamente mas próximos no “palácio da mente”, ao mesmo tempo que desvendou algum do passado entre Hannibal e Bedelia. E claro, proporcionando-nos incomparáveis momentos de êxtase visual – a opulente Florença, a gótica construção do passado de Hannibal, o “sexo caleidoscópico”, etc. Uma contagem decrescente para o inevitável reencontro: inesperado, cruel e sangrento – o caçador tornou-se afinal a presa, o caçador foi, afinal, rude. Sobressaltada, assisto à crua e impávida malvadez de Hannibal como se não soubesse do que ele já foi capaz. No momento a seguir, já sofro pelos dois e no outro, já regozijo por Hannibal ser como é, despedindo-me da incrível personagem que foi Mason Verger. E depois Hannibal troca-nos as voltas, atirando mais uma acha para a fogueira disfuncional que é a sua relação com Will – eu chamei-o “needy” Hannibal e posso acrescentar manipulador e cruel.

E o palco estava então pronto para a chegada do novo vilão…e que chegada, meus caros, que chegada! O “Great Red Dragon” é indiscutivelmente temível, conturbado e assustador, desde o primeiro momento! E quão extraordinário foi o trabalho de Richard Armitage? Ainda para mais se tivermos em conta que a sua apresentação não envolveu uma única palavra…apenas o moldar do corpo, treino, tatuagem e obsessão! E Armitage (e Fuller) nunca desapontou, conseguiu sempre elevar a personagem ao mito que ela é, desde a sua criação e execução das suas “mudanças” até ao conflito interior despoletado pela ligação a Reba. Destaco a cena tensa e prodigiosa com o tigre e aquela em que Dolarhyde consome a pintura que o consome a ele próprio, simplesmente portentosas!
O “Great Red Dragon” tem outras vítimas que não as famílias que “muda”: é ele quem força o novo reencontro entre Will e Hannibal. Um que começa como uma provação para Will e como um jogo para Hannibal. A manipulação deste, a sua obsessão em criar perfeito caos atinge um novo nível e proporciona-nos excelentes diálogos entre Hannibal e o Dragão. E um acto imperdoável de Hannibal. E um acto imperdoável de Will. A empatia de Will sempre foi controversa e a afirmação de Bedelia (maravilhosa e hipnotizante Gillian Anderson) deixa-nos a pensar: “Extreme acts of cruelty require a high level of empathy”. E podemos definir a decisão de Will após o ataque à sua família de outro modo que não cruel, despudoradamente e vergonhosamente cruel? Não nos iludemos, Will escolheu esmagar o pássaro, não apenas para apanhar o dragão, mas também porque estava curioso em saber como o pássaro seria esmagado. Deixo aqui um aparte para saudar a extraordinária composição de Raul Esparza, que sempre nos soube conquistar com a sua personagem ultimamente desprezível e que, face à imponência do Dragão (mais um tour de force de Armitage –ainda me arrepio só de me lembrar da sua animalesca investida) quase se redimiu. Quase, porque o Dragão não perdoa. Ao Dragão deve-se reverência e admiração ou é-se reduzido à nossa inflamável insignificância! Assombroso!

Neste momento, o Dragão até pode estar a atiçar a chama, mas não se pode negar que desde a 1ª temporada que observamos a construção de uma simbiose entre Hannibal e Will, caótica, desequilibrada, doentia, mas uma simbiose ainda assim. Como a Bedelia afirmou: “There’s only one way you can forgive Will” ou “You can’t live with him. You can’t live without him.” E daí a insanidade, a natureza obssessiva e bipolar, de admiração e companheirismo, de desprezo e ódio da relação entre estes dois homens. Hannibal desejou uma “família” com Will; Will não lhe perdoa o ataque à família que ele, livre, construiu de novo. Assim, a decisão de Will em “matar dois coelhos de uma só cajadada” não é de todo surpreendente, antes algo desprezível: mais uma vez, Will “encomenda” a outro a morte de Hannibal. E tal como aconteceu com Chilton, Will está sedento de observar os desígnios do Dragão. “Maybe this is my becoming”.



A noite é calma e escura. Brindemos à retumbante e brutal honestidade. O copo quebra, o corpo cai. Entra o Dragão, arrogante e dominador. O cordeiro observa, em desconcertante lassidão. Até a sua fúria o superar. Mas é o Grande Dragão Vermelho, o que não perdoa e a quem devemos reverência. Will tomba e sangra, cordeiro sacrificado, mas nunca sozinho. Hannibal quer cumprir a sua promessa, mais uma vez. E a série também se supera, mais uma vez. Após já tantos momentos de genial criatividade, de surreal e crua beleza, o que se seguiu foi orgásmica poesia, simultaneamente trágica e romântica, intensamente indelével. A queda do Dragão teve na sua natureza sangrenta uma beleza sublime e transcendente. O fogo cercando o quadro e consumindo o Dragão foi sem dúvida uma das imagens mais impressionantes da série! Contudo, foi o abate e os carrascos do Dragão que suplantaram tudo o que eu podia imaginar…o olhar concertado de ambos, a sua execução bárbara e simbólica…foi de uma desconcertante, plena e contundente intimidade que nos fez sentir intrusos! Folie à deux! Que soberbas e avassaladoras interpretações de Hugh Dancy e Mads Mikkelsen!

“That’s all I ever wanted for you, Will. For both of us.
It’s beautiful.”

Deixo um outro aparte para a utilização da música em “Hannibal”, sempre tão importante em momentos chaves, como o massacre do final da 2ª temporada, a segunda luta entre Jack e Hannibal e agora aqui, nesta comunhão apoteótica e funesta.


O silêncio é reconfortante. O olhar íntimo, de almas perversamente gémeas, de um amor que é tão absoluto quanto indefinível e ambíguo. A música cresce em intensidade. Surge um outro olhar, diferente. Unidireccional. De quê? Aceitação? De quê? Não acredito no que os meus olhos vêem. Acompanho o engolir do abismo, em dolorosa estupefacção e incondicional reverência!



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