31 março 2015

Rashomon






A chuva lança-se em bátegas pesadas e ameaçadoras. Ainda assim, não consegue lavar a inquietação e o tumulto interior de dois homens, testemunhas num julgamento sobre um peculiar e violento crime. Abrigados sob o portão da cidade, partilham com um terceiro a confusão e indeterminação de um relato moldável e intrigante, cuja veracidade oscila por entre a vaidade e a honra dos seus intervenientes.

Rashomon, acutilante conto moral sob o curioso disfarce de “o que aconteceu, quem fez o quê?”. Uma virtuosa história de manipulação, uma imperdoável análise ao âmago do Homem: qual é a natureza e extensão do seu sentido de honra e capacidade de responsabilização? E oferece-nos resposta? A chuva continua a tombar. Em Rashomon não se descobre a verdade, antes se ouve e assiste a várias verdades, a várias versões do mesmo acontecimento. A verdade pode não ser bonita, mas pode certamente ser embelezada. Para esconder a vergonha, a traição, a maldade. Para esconder as imperfeições que ameaçam a própria identidade. 

Dono de uma soberba realização e de impressionantes interpretações, Rashomon é sem dúvida filosoficamente denso e inquestionavelmente belo.


28 março 2015

The Imitation Game









Uma história extraordinária contada de forma meramente normal e quase desinspirada. A formalidade na realização de Morten Tyldum até terá sido bem-intencionada, contudo, ao invés de enaltecer a narrativa, apenas lhe retira fulgor e lhe acrescenta automatismo. Cumberbatch e Knightley são cativantes e competentes, a banda-sonora apaixonadamente adequada, mas isso não é suficiente para quebrar a monotonia e formalismo deste jogo...


22 março 2015

(As) Simetrias [19]







Por entre o génio absoluto de Peter Sellers, 

criador de três memoráveis caricaturas, acutilantes e provocadoras!

"Sir, I have a plan!"







 "Gentlemen, you can't fight in here! This is the War Room."

President Merkin Muffley








"Do I look all rancid and clotted? You look at me, Jack. Eh? Look, eh? And I drink a lot of water, you know. I'm what you might call a water man, Jack - that's what I am. And I can swear to you, my boy, swear to you, that there's nothing wrong with my bodily fluids. Not a thing, Jackie."

Group Capt. Lionel Mandrake








"Mr. President, it is not only possible, it is essential. That is the whole idea of this machine, you know. Deterrence is the art of producing in the mind of the enemy... the FEAR to attack. 
And so, because of the automated and irrevocable decision-making process which 
rules out human meddling, the Doomsday machine is terrifying 
and simple to understand... and completely credible and convincing."

Dr. Strangelove





(Peter Sellers em "Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb")





16 março 2015

Fifty Shades of Grey






Ora vamos lá ao que interessa…

I don’t make love. I fuck. Hard.” Se estão à espera disto, vão até outras paragens.

Quanto ao resto, o filme melhora alguns aspectos do livro. Primeiro, e muito importante, tiraram aquela referência extremamente pirosa e constrangedora à “inner godess”! Aleluia! Depois, a Anna do filme acaba por ser um pouco mais assertiva que a descrita no livro ao mesmo tempo que atenuaram a faceta mais obsessiva e controladora (fora do quarto) de Christian Grey. Por último, está presente mais humor do que seria de esperar, nomeadamente nas reacções de Anna a toda a situação, que deixam de ser de simples constrangimento para se tornarem engraçadas e até espirituosas. Ou seja, destes pormenores até gostei!

Agora enquanto filme, tal como o livro, não esperem nada de elaborado ou profundo: o primeiro volume é pouco mais que a descrição (em má escrita) de uma série de encontros sexuais e se no filme investiram mais na romantização da relação ao invés do sexo, certo é que se trata apenas disso, sem desenvolvimento das personagens ou uma história complexa. Achei que existia química sim entre Dakota Johnson e Jamie Dornan mas o argumento não lhes permite fazerem mais que aquilo que mostraram. Não se fazem omoletes sem ovos, não é? 

Concluindo, acaba por ser muito brando e "certinho" para quem se publicitou como tão provocador e sensual. Achei que funcionou como uma boa adaptação do livro e por isso não desgostei, embora enquanto filme em nome próprio seja demasiado medíocre.




And now for your momento of Zen:”















12 março 2015

As Curtas do Fantasporto 2015



Durante a minha "estadia" pelo Fantas, tive oportunidade de assistir a estas curta-metragens, passadas antes dos filmes de cada sessão. Aqui fica a minha opinião sobre elas:


Dog 




De inspiração asiática, com porrada à bruta e à séria a gravitar por entre os temas de amor e redenção. Interessante mas de concretização mediana.


Les Pécheresses





A mulher e a violência e humilhação que sempre lhe foram infligidas ao longo dos séculos, a partir de 3 mulheres diferentes: Eva, do Génesis, a mulher do Barba Azul e uma anónima dançarina criada pelo realizador, 3 histórias, 3 símbolos, 1 mensagem. Uma curta de animação visualmente bela e curiosa, ao serviço de uma temática bastante negra e desoladora que nos faz reflectir sobre a condição da mulher.



El Bosque Negro 





Uma curta ali do país vizinho, que tanto pode querer homenagear como gozar com os contos de fadas e toda a herança de coragem, heroísmo e cavalheirismo! Bem apresentada e desenvolvida, revela-se como uma história sombria que põe em causa o habitual final feliz! 


Odd One Out 





No final das sessões, já mal me conseguia lembrar sobre o que era esta curta. Basicamente achei-a aborrecida e longa (!) e pouco mais posso dizer, não conseguiu captar minimamente a minha atenção. 



Rien Ne Va Plus 





Um bom exemplo de concretização, numa curta irónica e quase perversa, que começa idílica e termina grave, rindo-se daqueles que acham que podem escapar à (má) sorte!


10 março 2015

Liza, The Fox Fairy (Fantasporto 2015)







Liza, a doce enfermeira que procura o amor verdadeiro. O fantasma de um cantor pop japonês que a assombra. A Hungria dos anos 70, que aqui não é comunista: ouve-se o seu líder a discursar sobre o caminho para o capitalismo e o amor é procurado por entre uma dentada e outra no hambúrguer do Meek Burger (get it?). Uma sucessão de pretendentes cómicos e desajeitados que caem que nem tordos. Uns pozinhos de cultura japonesa e outros de cultura nórdica. Querem trama mais hilariante e extravagante que esta?

Assim se desenrola "Liza, The Fox Fairy", em tom exagerado, delirante e cómico, surpreendendo-nos com a sua vivacidade e encantando-nos com a sua história! Uma potencial receita para o desastre é afinal uma aposta mais que ganha: sim, há muito nonsense mas tudo encaixa de forma inteligente e divertida e despretensiosa neste inefável comédia de amor e de costumes! As personagens e o trabalho dos seus actores são inegavelmente cativantes e contagiantes! A música e a fotografia contribuem sobremaneira para o ambiente pretendido! É impossível não ter sempre um sorriso nos lábios, entre sonoras gargalhadas!

Károly Ujj Mészáros, o realizador, até "pediu desculpa", durante a apresentação, por ter trazido ao Fantas um filme sem sustos nem arrepios...Acho que as vívidas palmas no final do filme manifestaram bem a opinião do público, mas deixo aqui por escrito: senhor Mészáros, ainda bem que nos trouxe esta sua gloriosa, irreverente e hilariante criação!



09 março 2015

Awaiting (Fantasporto 2015)








Não nos apanha totalmente de surpresa, é claro logo de início que qualquer coisa de estranho, no mínimo, se passa naquela casa. O isolamento forçado, o ar agreste e fechado do pai e a atitude alienada e inconsequente da filha  são indícios que o melhor é fugir dali a sete pés o quanto antes. Mas quando nos apanha, tal como ele Jake é apanhado, atinge-nos com uma tal rara e avassaladora intensidade que nos deixa sem fôlego!





"Awaiting" é exactamente tudo o que um filme deste género deve ser: tenso, vibrante, duro, surpreendente, violento, intrigante e arrasador. Tem um vilão, Morris (o pai), inquietante e convincente, assustador, enigmático e puro psicopata. A sua vítima, Jake, possui a dose certa de confiança, resistência e vulnerabilidade. E depois temos o terceiro vértice deste perturbador triângulo: a filha, Lauren, afastada de tudo e de todos, ingénua e perturbada, para tornar esta mistura ainda mais devastadora. O jogo de perseguição, de fuga e tortura, é sufocante, inteligente, incerto e sangrento, deixando-nos em constante e extático sobressalto, e tudo termina num horror e incredulidade sonantes e angustiantes! Quem sorrirá por último? A loucura estará certamente a seu lado, piscando-nos o olho, enquanto tentamos afastá-la...



06 março 2015

Children's Show (Fantasporto 2015)






A realidade é por vezes mais terrível que a ficção. É o que "Children's Show" nos mostra, frontal e duro, sem hesitações ou pudores. Nas Filipinas, a pobreza e a miséria forçam crianças entre os 10 e os 15 anos a participar em torneios ilegais de "streetfighting". O que "Children's Show" faz é relatar-nos essa realidade, sob o olhar já demasiado cru e experiente de dois irmãos. Assistimos às suas lutas, dentro e fora do ringue, que a miséria parece nunca vir só e eles têm também que enfrentar a negligência e violência vindas do pai. Felizmente, nem tudo é mau e se eles se têm um ao outro, também têm a avó e esta relação oferece-nos uma das mais, ainda que rara, enternecedora cena. Até a "escuridão" se sobrepôr novamente...

"Children's Show" constituiu uma agradável surpresa. Não conhecia o cinema filipino e sem dúvida que esta foi uma amostra cativante, séria e notável!



The Perfect Husband (Fantasporto 2015)








Durante a primeira metade do filme fiquei sem saber muito bom o que iria sair dali. Um casal em crise espera recuperar a relação que antes tinham indo passar um fim de semana fora no campo. A mulher é quem está claramente mais perturbada e lançam-se sugestões de que algo paranormal possa andar à solta. Depois de um susto e de um encontro com as autoridades, tudo parece melhorar e chega a vez do romance. E depois, subitamente, o descalabro ocorre e temos um psicopata à solta! E ao que parece, também a "xunguice", mas daquela mesmo má! Os protagonistas são ambos uns canastrões, sem um pingo de credibilidade, e as situações são construídas de forma tão ridícula e inconcebível que até dói! Desde a mulher que ao defender-se do ataque consegue parar o marido e foge mas deixa o machado com que ele a estava a atacar convenientemente aos seus pés até às expressões maradas de suposto psicopata com que o marido nos brinda, enfim, é um sem fim do piorio! E depois lá chega o twist final, ao qual concedo alguma graça, mas que depois de uma história tão mal construída, parece apenas um artifício fácil para colar o filme...o que, na minha opinião, definitivamente não resultou.


05 março 2015

III (Fantasporto 2015)






Fiquei como que perdida na beleza etérea de um sonho vago e intermitente. É que se há coisa de que este "III" se pode gabar é do seu deslumbramento visual, de uma fotografia sumptuosa e galante que gravita entre esperança e desespero, tranquilidade e temor, sonho e pesadelo. A música que a acompanha é um encaixe perfeito, sem dúvida.

Pena é que "III" não possua a consistência e profundidade narrativas que suportem a sua interessante premissa e que se aliem graciosamente à sua pujança visual. Assim como está, regista-se apenas como uma sucessão de belíssimas e quase hipnóticas imagens sem um fio condutor que lhes confira verdadeiro significado.



Mourning Grave (Fantasporto 2015)






Um jovem rapaz que é capaz de ver fantasmas. Fantasmas que não o largam para que os ajude a resolver os seus ressentimentos. Por momentos lembrei-me daquela série meia pirosa que é "Ghost Whisperer", se bem que em  modo bem grotesco, porque em "Mourning Grave" o fantasma-mor revela-se um colérico e desproporcionado assassino em série. Pelo meio, para aligeirar o ambiente, temos romance invulgar e humor pontual proporcionado pelo tio no nosso conturbado rapaz.

Veredicto? A meio do filme já eu tinha adivinhado o twist final, que, podendo não ser ultra surpreendente, podia pelo menos ter sido construído de forma mais intrigante e menos evidente.


04 março 2015

One On One/il-dae-il (Fantasporto 2015)






Vendetta, vendetta, vendetta...um a um, todos caem, num dominó de tortura e violência irreversível e perturbador. Corrupção e justiça, retribuição e arrependimento, degladiam-se num filme tenso e sangrento, que desenvolve e filma a sua acutilante e grave premissa de forma exemplar. "Quem és tu?" arremessa-nos no final. Um líder ou um membro do rebanho? Um lutador ou um conformista? Alguém que assume a responsabilidade dos seus actos ou alguém que apenas estava a cumprir ordens? A resposta escreve-se a sangue, neste "One On One" contundente e desolador.


The Well (Fantasporto 2015)






Uma história de sobrevivência e ganância, de maldade e de compaixão. Num vale do Oregon devastado pela seca, a água é ouro e a diferença entre a vida e a morte, causa ou consequência. 

"The Well" constrói uma narrativa forte e apelativa, com uma protagonista (Haley Lu Richardson) resiliente e corajosa que suporta de forma consistente todo o filme, numa atitude badass que tem tanto de desespero como de determinação.


03 março 2015

Pseudonym (Fantasporto 2015)



A crítica contém spoilers.






Luz das velas, desejo e antecipação. Copos de vinho, lábios carnudos e jogos de sedução. Não importa que seja online, parece-lhe real. Até que a encenação tomba subitamente e ele, ameaçado, perseguido e capturado, enfrenta uma realidade bem palpável, dura e assustadora: forçado objecto de um snuff film

"Pseudonym", estranho título, é interessante mas apenas isso, o desenvolvimento mediano não tem força suficiente para o tema que quis abordar. Tudo foi resolvido muito à pressa e se a justaposição da "celebração" da mulher com o sofrimento da sua vítima até funcionou bem, no final, o conjunto soube a pouco.

02 março 2015

Be My Cat: A Film For Anne (Fantasporto 2015)






" I don't like men or dogs. I love,just love women and cats! They're so cute!" 


Não,ele não gosta de mulheres. Ele é um misógino,frustado e doentio e agora obcecado por Anne Hathway,a perfeita acriz e mulher! 
Obcecado por a dirigir num filme,convence-se que se fizer um documentário que mostre as suas capacidades várias de realização,produção,interpretação,whatever,com 3 desconhecidas actrizes romenas,na sua cidade natal, Anne,mal o veja,correrá para os seus braços! 

A premissa de "Be My Cat" conta-se em meia dúzia de linhas e era assim que devia ter passado para o ecrã,sob a forma de uma curta...O ponto de partida até é interessante e curioso e o realizador/actor até compõe uma personagem tresloucada doentiamente cómica (trejeitos,expressões,gargalhadas e falas totalmente alucinadas) mas o facto é que a certa altura se torna repetitivo e aborrecido e a história acaba por ser algo inconsequente...A determinado momento ele questiona-se se se terá transformado irreversivelmente na sua personagem (sim, porque ele considera-se um seguidor fervoroso do Método). A resposta é clara,desde o início:ele é apenas um psicopata com uma câmara.