“A casa que os Maias vieram a habitar no Outuno de 1875 era conhecida…como o Ramalhete.”
A afirmação ecoa, solene e despojada, na tela como nas páginas, dando início à encenação. Memórias, figurinos, retratos e velhos móveis, artefactos e manuscritos, comungando, nesse harmonioso e peculiar genérico, com as fotografias dos actores e com o próprio guião.
Está riscado, está escrevinhado, é (quase) cópia das palavras de Eça. Não é, contudo, uma mera transposição, aborrecida e linear. Longe disso, afirma-se como uma singular e vívida experiência, uma que é extraordinariamente capaz de se apropriar da obra sem lhe retirar espírito ou fibra!
Em tom eternamente mordaz, o filme contrabalança de modo arrebatador a forte crítica moral e social com o turbilhão emocional do romance entre Carlos Eduardo e Maria Eduarda. Desde o “chique a valer” Dâmaso ao obtuso Gouvarinho, desde o saudoso Alencar ao incompreendido Cruges, desde o fleumático Craft e tantos outros até ao “antepassado bonacheirão” Afonso, todos compõem exemplarmente o âmago deste “chiqueiro” à beira-mar plantado, num retrato que tanto tem de cómico como de miserável! Como que a reforçar esta caracterização, a decisão de usar cenários falsos, lugares passados pintados a óleo, ainda que tenha por trás razões económicas, acrescenta-lhe um simbolismo que eu considero delicioso! Que pitoresco, que ilusão esta que salienta o triste anacronismo de Portugal, que belo e contudo desolador contraste entre as personagens e o ambiente que as rodeia…este pode ter mudado mas o chiqueiro mantém-se!
Assim, como diria o Ega, “preciso de um banho por dentro!” E oh, esplêndido Ega, este Ega que parece ter saltado directamente da pena de Eça para o ecrã! Soberbo Pedro Inês, sarcástico, intenso, rebelde, um assombro!
Do mundano ao amor! “Sabe perfeitamente que a adoro!”. Ah, doce e insaciável amor, voraz e cortês amor! Talvez por isso as cenas até à declaração de Carlos sejam filmadas com uma sensibilidade pungente e delicada, dois amantes inconfessos e castos. Por outro lado, o momento da confissão de Maria Eduarda reveste-se de um despojo emocional tumultuoso e até revigorante!
E, no entanto, o brasão dos Maias, veludo sangue, sangue de paixão, sangue de dor, sangue de tragédia, não deixa de tombar, irreversivelmente, nessa noite sem luar nem perdão! Dois amantes confessos e ávidos, um, apenas consciente do amargo pecado. “Como é possível que…?”. Já o tinha questionado Ega, em mais um momento de notável expressão. Como, brada agora Carlos, incrédulo e revoltado? Graciano Dias é assim sublime neste acto em desgraça, corpo e alma dilacerados de ardor e mágoa! Por sua vez, e até estranhamente, a personagem de Maria Eduarda é a mais quieta do trio principal, ainda que Maria Flor consiga o seu momento: uma desoladora prostração ao som de La Traviata!
“Meu caro, a vida é engano e desilusão!”.
E oh, que belo engano, que bela ilusão nos oferece João Botelho! Um excelente trabalho de adaptação e realização, criador desta apaixonante e envolvente “ópera” trágico-cómica que, não só homenageia, como capta de forma crua e magnética a essência do romance de Eça! Bravo!
Imagens retiradas de: http://www.ardefilmes.org/osmaias/
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