26 setembro 2014

Os Maias






“A casa que os Maias vieram a habitar no Outuno de 1875 era conhecida…como o Ramalhete.” 

A afirmação ecoa, solene e despojada, na tela como nas páginas, dando início à encenação. Memórias, figurinos, retratos e velhos móveis, artefactos e manuscritos, comungando, nesse harmonioso e peculiar genérico, com as fotografias dos actores e com o próprio guião. 
Está riscado, está escrevinhado, é (quase) cópia das palavras de Eça. Não é, contudo, uma mera transposição, aborrecida e linear. Longe disso, afirma-se como uma singular e vívida experiência, uma que é extraordinariamente capaz de se apropriar da obra sem lhe retirar espírito ou fibra! 





Em tom eternamente mordaz, o filme contrabalança de modo arrebatador a forte crítica moral e social com o turbilhão emocional do romance entre Carlos Eduardo e Maria Eduarda. Desde o “chique a valer” Dâmaso ao obtuso Gouvarinho, desde o saudoso Alencar ao incompreendido Cruges, desde o fleumático Craft e tantos outros até ao “antepassado bonacheirão” Afonso, todos compõem exemplarmente o âmago deste “chiqueiro” à beira-mar plantado, num retrato que tanto tem de cómico como de miserável! Como que a reforçar esta caracterização, a decisão de usar cenários falsos, lugares passados pintados a óleo, ainda que tenha por trás razões económicas, acrescenta-lhe um simbolismo que eu considero delicioso! Que pitoresco, que ilusão esta que salienta o triste anacronismo de Portugal, que belo e contudo desolador contraste entre as personagens e o ambiente que as rodeia…este pode ter mudado mas o chiqueiro mantém-se! 
Assim, como diria o Ega, “preciso de um banho por dentro!” E oh, esplêndido Ega, este Ega que parece ter saltado directamente da pena de Eça para o ecrã! Soberbo Pedro Inês, sarcástico, intenso, rebelde, um assombro! 





Do mundano ao amor! “Sabe perfeitamente que a adoro!”. Ah, doce e insaciável amor, voraz e cortês amor! Talvez por isso as cenas até à declaração de Carlos sejam filmadas com uma sensibilidade pungente e delicada, dois amantes inconfessos e castos. Por outro lado, o momento da confissão de Maria Eduarda reveste-se de um despojo emocional tumultuoso e até revigorante! 
E, no entanto, o brasão dos Maias, veludo sangue, sangue de paixão, sangue de dor, sangue de tragédia, não deixa de tombar, irreversivelmente, nessa noite sem luar nem perdão! Dois amantes confessos e ávidos, um, apenas consciente do amargo pecado. “Como é possível que…?”. Já o tinha questionado Ega, em mais um momento de notável expressão. Como, brada agora Carlos, incrédulo e revoltado? Graciano Dias é assim sublime neste acto em desgraça, corpo e alma dilacerados de ardor e mágoa! Por sua vez, e até estranhamente, a personagem de Maria Eduarda é a mais quieta do trio principal, ainda que Maria Flor consiga o seu momento: uma desoladora prostração ao som de La Traviata! 





“Meu caro, a vida é engano e desilusão!”. 

E oh, que belo engano, que bela ilusão nos oferece João Botelho! Um excelente trabalho de adaptação e realização, criador desta apaixonante e envolvente “ópera” trágico-cómica que, não só homenageia, como capta de forma crua e magnética a essência do romance de Eça! Bravo!



Imagens retiradas de: http://www.ardefilmes.org/osmaias/


16 setembro 2014

Lucy







O timbre profundo e solene de Morgan Freeman tem tanto de calmante como de convincente. “Só usamos 10% do nosso cérebro. O que aconteceria se conseguíssemos desbloquear as áreas esquecidas?”. Porque não? A questão premente não tem a ver com a falsidade da premissa (estamos no terreno da ficção científica, há margem de manobra!) mas sim com o seu aproveitamento enquanto motor do filme! E que posso eu dizer quanto a isso? Bem, parece-me que Besson só utilizou uns 65% das suas capacidades… 

O filme até começa com garra: as sequências que vão desde o aprisionamento de Lucy até à sua transformação e vingança são sem dúvida vibrantes e entusiásticas! Scarlett Johansson assume firmemente essa postura de “common girl turned super woman!”, se tal se pode dizer! No entanto, a partir desse momento, os seus poderes sobre-humanos são apenas um artifício para conduzir o filme numa sucessão previsível de clichés, tiroteios e confrontos finais…Ora bem, não se pedia nenhuma dissertação (que o filme nem joga nesse campeonato) mas custava muito ter-se focado mais no dilema entre as potencialidades e os riscos de Lucy (assim à semelhança da caixa de Pandora), por exemplo, do que nos oferecer o desenvolvimento medíocre que já vimos tantas vezes? Nem vou falar do final, até porque neste momento nem sei se gostei ou desgostei, mas por um lado acho que, mais uma vez, foi uma conclusão fácil…






Em suma, “Lucy” assume-se como um entretenimento (demasiado) descomprometido, ainda que agradável, deixando dessa forma um certo amargo de boca pelo desaproveitamento das suas potencialidades!