Numa descontraída conversa, Alex, a musa, diz, referindo-se à moral de um livro, que o futuro está já completamente decidido, que tudo está determinado. Será de facto assim? Seremos nós meros peões na estrada da vida, simples marionetas nas mãos do destino, condenados à cruel fatalidade? Ou serão as nossas escolhas e os nossos actos que nos definem e construem o futuro que desejamos? Ou será a vida uma atroz anedota e tudo se reduz à absurda imprevisibilidade do local errado à hora errada? E, qualquer que seja a verdade, serão todos os actos irreversíveis? Podemos alterar o que já foi posto em movimento? Se a resposta for não, a irreversibilidade é uma constante deveras cruel. Talvez seja este o motivo da cronologia inversa do filme. O horror dos acontecimentos é amplificado a partir do momento em que a história se inicia pelo seu fim. Porque já nada podemos fazer e sabemo-lo. Impotentes, vimos o pior do ser humano. Nauseados, desconfortáveis, contemplámos uma bárbara vingança, nos artifícios de um néon cru e de um psicadélico som. Torturados pela inércia, assistimos à mais abominável degradação do ser, sob a claustrofobia de um vermelho imundo e inquietante. E no retrocesso, nem conseguimos apreciar a felicidade e o amor daquele casal, pois já presenciamos o seu inferno. Tudo é repulsa, tudo é agonia.
“Irreversible”, o filme choque de Cannes em 2002. Julgo que não pode ser reduzido a esse rótulo. Uma análise crua, violenta e dilacerante do comportamento humano e da sexualidade, Irreversible choca-nos sim, e de que maneira, mas a sua perversão e impiedade força-nos a reflectir e questionar o que outrora considerámos seguro. “A vingança é um direito humano”, assevera provocatoriamente uma das personagens, apenas para instigar o que Marcus, no seu âmago, tinha desde logo decidido. Será? Um direito? Ou uma reacção? Ou uma escolha? Um acto justificável ou sempre bestialidade? Um passo para o apaziguamento ou o continuar da ruína? A revolta e o desespero de Marcus são-nos inicialmente apresentados sem contexto e, exactamente por isso, o resultado é ainda mais chocante. Pois se é a sua dor que conduz àquele momento, tudo culmina às mãos do outro vértice do triângulo, Pierre. Aquele que, no retroceder, surge como o racional, como a voz da consciência. Aquele que, na tentativa de acalmar e persuadir Marcus, exclama algo como: “Nem os animais procuram a vingança!”. Aquele que, no limite do seu sofrimento, quebra. Aquele que, repetidamente, desfere toda a sua fúria, revolta, frustração… Por ela. Tudo por ela. Alex, apenas Alex, mulher, amiga, amante. Que vemos primeiro despida e mutilada. Segue-se a longa, inimaginável e obscena agonia. Para depois a observarmos na sua intimidade, na sua cumplicidade com Marcus. E por último, no calor da esperança, na crença de um futuro. Infelizmente, apenas segundo as suas perspectivas. Nós, escravos da irreversibilidade, agonizamos a cada momento…conhecemos terrivelmente bem a premente destruição.
Monica Belluci, Vincent Cassel, Albert Dupontel, a maculada trindade. Avassaladoras interpretações, de uma entrega física e psicológica (com óbvio destaque para Belluci) absolutamente desarmante! Gaspar Noel, o prepotente orquestrador. Da díspar câmara, confusamente turbulenta ou indignamente estática, da repugnante proximidade dos planos, da incómoda e violenta experiência a que sujeita o espectador.
Le temps détruit tout…